UMA MELODIA EM ALTO MAR
(02/03/2006)

Silvano Darcizo Hackenhaar

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Ilha de Santa Catarina!
Deslumbrante, encantadora, mágica!
Um verdadeiro paraíso terrestre!

Situada no lado leste do Estado de Santa Catarina, a ilha de Santa Catarina é toda contornada por maravilhosas praias, de leste a oeste e de norte a sul.

No centroda ilha, ladeada de morros encravados por casebres e mansões, situa-se a charmosa Lagoa da Conceição que, quilômetros acima, tem ligação direta com o mar através de um canal que desemboca na bela praia chamada Barra da Lagoa; mais para o sul esparrama-se a mansa Lagoa do Peri, cujas margens são quase desabitadas.

No lado oeste da ilha situa-se uma parte da bela capital Florianópolis; a outra parte fica no continente.

Dezenas e dezenas de praias, uma mais linda que a outra, embelezam e dão charme à ilha, atraindo milhares de turistas.

A ilha possui várias aldeias de pescadores. E esses pescadores contam cada história! Depois da visita a uma dessas aldeias é que surgiu a presente narrativa.

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Um suave céu rosado prenuncia o iminente fulgir da aurora. O mar balança suavemente como se estivesse embalando o sono de alguém. Aos poucos as últimas sombras da noite dão lugar aos cálidos e resplandecentes raios do sol, esquentando as águas e vivificando a terra. Uma brisa suave deslisa sobre a superfície do mar, aumentando um pouco o balanço das ondas, refletindo os raios solares que despontam no firmamento, dando a sensação de uma imensa fornalha a explodir sobre as águas.

Um espetáculo da natureza!

Lá longe, na curva do horizonte, surge um pequenino ponto escuro; depois outro e mais outro, enfim dezenas de barcos surgem na linha do firmamento, entrecortando os luminosos raios do astro rei.

São embarcações pesqueiras que vararam a noite em alto mar.
São pescadores que dependem da safra do mar; é o seu ganha pão.
São homens fortes, muitas vezes rudes, de pouca prosa, muito simples, mas com a franqueza estampada no rosto.

Quando em terra, transmitem serenidade e paz.

Seu linguajar singelo é calmo e pausado; nunca sentem pressa, ansiedade ou afobação.
Isso não significa que sejam lerdos e preguiçosos; muito pelo contrário, na sua lide diária são ágeis e exímios pescadores.

Esse povo do mar tem muitas histórias para contar.
Histórias reais, lendas e contos muitas vezes inverossímeis.
Enquanto os barcos, vindos do mar, se aprestam para o desembarque, pescadores que pernoitaram em terra, recolhem as redes de arrasto estendidas na beira da praia.

Essa lide é muito singular; como essas redes pesam muito, são necessárias várias pessoas para puxá-las para fora. É um verdadeiro mutirão.

Em troca dessa mão-de-obra os pescadores deixam os peixes menores para àqueles que ajudaram e com as sobras destes, as gaivotas fazem uma festa, como que varrendo a praia, deixando-a bem limpa.

Enquanto isso, outra turma de pescadores lança-se ao mar para a pesca diurna; todos seguem apreensivos e esperançosos, esperando uma boa pesca.
Existem diversos tipos de embarcações pequenas, entre elas a jangada.
Existe a “jangada simples”, que não se afasta muito da praia e a “jangada do alto” própria para navegação em alto mar.

A jangada é uma embarcação típica para pescaria, com linha constituída de paus roliços de jangadeira unidos com cavilhas de madeira dura, com vela de baioneta com ou sem retranca, deslizando pelo mastro por meio de duas urracas.

A história a seguir é uma história normal de um pescador, vivendo simplesmente o seu dia-a-dia, até que viu e ouviu algo estranho… muito estranho.

João Jangadeiro era um pescador como os demais, simples, comedido no falar, muito sério, largando ao mar diariamente a sua jangada.

Sua palavra era respeitada, pois uma vez empenhada, era cumprida, custasse o que custasse.
Por isso todos confiavam nele.

João Jangadeiro era carinhosamente chamado pelos seus companheiros de “Janga”; perde-se no tempo a data em que recebeu essa alcunha.

Na aldeia de pescadores em que Janga morava, sua palavra era uma garantia, ninguém duvidava.
Além disso, a sua simplicidade e simpatia conquistavam a todos.
Nas festas da aldeia todos se divertiam e se respeitavam.
Um dia, porém, essa palavra foi duramente posta à prova!
Será que Janga enlouquecera?

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Foi assim.
Certo dia, como de costume, Janga juntamente com seu filho Ubirajara, mais conhecido como Bira, lançou-se ao mar com a sua jangada.
Um fresco e moderado terral soprava do continente impulsionando suavemente a pequenina embarcação pesqueira, mar adentro.
Faceira, a jangada balouçava mansamente à flor das águas azuis.
Volta e meia golfinhos acompanhavam a jangada fazendo malabarismos fora da água, como que saudando os pescadores.
Era um lindo e luminoso dia, mar calmo com pequenas ondas.
Chegados no ponto previamente determinado, lançaram as redes ao mar.
Passou-se um bom tempo e nada de peixe.
Seguiram um pouco adiante. Novo lançar de redes…e nada!
Seria um daqueles dias frustrantes, sem pesca?
Mas Janga e Bira, afeitos ao mar, esperavam, com paciência.
Volta e meia recolhiam a rede para jogá-la em outro lugar.
Repentinamente uma linda e suave melodia tirou-os do marasmo.
- Que é isso?
Foi quase um grito de ambos, ao mesmo tempo!
Mas, afinal, o que fora aquilo?
Empertigaram-se sobre a jangada e vasculharam o horizonte. Nada!
Examinaram as águas.Nada!
Mas, de repente, vislumbraram uma mancha escura, dentro do mar, que vinha em direção à jangada.
Pescadores experientes, Janga e Bira, vibraram muito, pois aquela mancha só poderia significar uma coisa: peixe, muito peixe! Pelo jeito,um grande cardume!
Sim era um cardume enorme e…coisa estranha!
Golfinhos? Sim muitos golfinhos, pareciam dirigir aquele cardume para cima da jangada!
Nesse instante, ambos ouviram novamente aquela melodia suave, indefinível, mas muito linda, só que desta vez bem mais perto deles.
Entreolharam-se. Será que o sol quente estava fritando seus miolos?
A melodia continuava…ora de um lado da jangada…ora do outro…
Mas não viam ninguém!
De repente lembraram-se do cardume, que a essa altura já tinha saturado a rede! Era muito peixe, demais, a rede pesava como nunca havia pesado!
Janga e Bira ficaram apreensivos. Será que a rede e a jangada aguentariam?
E na azáfama de cuidar dos peixes, esqueceram-se da melodia misteriosa.
Era tanto peixe, que ambos lembraram dos amigos e lançaram um rojão de aviso às demais embarcações pesqueiras daquela área marítima.
Em pouco tempo dezenas de embarcações estavam envolvidas numa enorme lufa-lufa recolhendo peixe, como nunca aqueles pescadores tinham visto!

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Uma vez em terra, todos acorreram para Janga e Bira.
Queriam saber como acontecera aquele, para eles, milagre.
Mas os dois não sabiam responder, a não ser…
- Fala homem! Diziam para Janga,
- A única coisa que lembro, foi um bando de golfinhos dirigindo o cardume em nossa direção…e ao mesmo tempo eu e Bira ouvimos uma melodia muito bonita.
Foi o que ele conseguiu dizer, todo acabrunhado, envergonhado, pois sabia que ninguém iria acreditar.
- O quê? - Foi a pergunta de espanto dos demais pescadores!
Os pescadores entreolharam-se e romperam numa gargalhada!
- Ô Janga! Você está de gozação conosco! Fala a verdade!
- É verdade! Bira também ouviu!
Todos olharam interrogativamente para Bira.
- É verdade! – Disse ele.
Olhares de espanto, de dúvida, de incompreensão, de censura.
O que estava acontecendo com Janga e Bira? Será que o sol afetara seus miolos?
Cabisbaixos, vexados, em meio às gargalhadas dos amigos de pesca, Janga e Bira, recolheram-se as suas choupanas, a mais ou menos sessenta metros da praia.
Um olhava para o outro, sem entender, sem saber o que dizer.
Após longo tempo, Bira quebrou o silêncio e perguntou:
- Pai, quem você acha que tocou aquela música?
- Não sei meu filho. Não sei mesmo! Não entendo o que aconteceu!
Janga deu um suspiro profundo e saiu a caminhar na beira da praia.

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A lua, qual enorme disco de prata, surgira argenteando as águas e perlando as alvas praias.
Janga, braços cruzados, como se quisesse proteger-se da fresca brisa marinha, recostara-se num rochedo à beira-mar.
Olhar fixo, distante, sobre aquela imensidão líquida a sua frente, pensava.
Pensava muito. Como explicar, como entender aquela melodia maravilhosa?
E o pior. Seus amigos haviam duvidado dele!
- Como pode? Duvidaram de mim! - Ruminava ele.
Por outro lado ele tinha que lhes dar razão. Era difícil aceitar uma história dessas.
Estava tão absorto em seus pensamentos que não percebeu a figura que surgira, de dentro das águas, bem a sua frente.
Uma figura estonteante, feminina.
Seu corpo brilhava sob a luz da lua. Metade mulher e metade peixe!
Quando Janga viu “aquilo”, quase desmaiou, seus olhos arregalaram-se e seu coração parecia querer saltar pela boca!
- Mas…mas…o que…está…está…acontecendo? – Conseguiu balbuciar!
Teve vontade de sair correndo…mas suas pernas não obedeceram!
Já estava quase em estado de pavor…quando começou ouvir a mesma melodia que escutara em alto mar. Lindíssima…calma…parecia de outro mundo!
Acalmou-se um pouco.
Então percebeu que a melodia vinha daquele ser. Ela estava cantando!
Já mais senhor de si, começou a analisar o que via a sua frente.
Era indescritível!!!
Aquela figura parecia ser uma mulher, com dois terços do seu corpo fora da água. A metade superior era de uma mulher perfeita e a metade inferior, mais ou menos da cintura para baixo, era um corpo de peixe, inclusive com escamas!
Cabelos loiros e longos caiam sobre suas alvas espáduas, em forma de tranças.
- Eu devo estar sonhando! – Pensou Janga.
Mas não! A melodia continuava e ela parecia sorrir para ele!
Um olhar penetrante, esquadrinhando o fundo da sua alma!
Ficou arrepiado dos pés à cabeça. Sentia-se desnudo perante aquela “mulher-peixe”.
Parecia-lhe que ela procurava algo dentro dele!
E procurava mesmo. Sondava os sentimentos e pensamentos de Janga.
Percebia a pureza e bondade do mesmo!
Por isso, e só por isso, apareceu a ele, um “simples pescador”, mas onde a ganância e a soberba ainda não tinham feito morada.
Sinceridade ela captava nos olhos dele.
E assim, aos poucos, uma simpatia surgiu entre ambos.
Janga aos poucos foi perdendo o medo, substituído por um grande ponto de interrogação.
Que ou quem seria essa “mulher-peixe”?
Nesse instante ela sorriu” Que sorriso encantador! E cantou…
Descrever o que Janga sentia era impossível!
Olhar extasiado, parecia petreficado. Que cena!
Aquele ente, tão diferente, refletindo os raios da lua em suas escamas, cantando para um ser humano, que, pelo inusitado do fato, perdera o sentido real das coisas, sem saber onde estava e o que fazia, em meio ao suave murmurar das ondas quebrando na praia.
Repentinamente mais vozes melodiosas juntaram-se à da “mulher-peixe” e algo sublime aconteceu!
Um clarão vindo, não se sabe de onde, iluminou a cena!
Muitas outras “mulheres-peixe” estavam ao redor da primeira e um coro vibrou em uníssono sobre as ondas.
E a melodia sobre as ondas transformou-se em ondas de melodia!
Uma melodia suave, inebriante, que tomou a praia e foi ouvida por todos os habitantes daquela aldeia de pescadores!
Todos se lançaram para fora das casas a tempo de ver um clarão desfazendo-se sobre as ondas, de onde vinha a maravilhosa melodia!
No entanto, ao chegarem à praia somente viram Janga prostrado sobre a areia, chorando convulsivamente! Mas seu rosto parecia irradiar luz!
Não se via mais nada sobre as ondas.A melodia que inebriara a todos, cada vez parecia mais longe, até desvanecer-se na imensidão prateada do mar.
Novamente Janga, agora sozinho, teve que dar muitas explicações!
Só que desta vez todos acreditaram nele!
Somente uma pergunta ficou sem resposta: “Quem era aquela “mulher-peixe”?
Enquanto isso, a uma curta distância dali, algo extraordinário estava acontecendo: milhares de tartaruguinhas haviam descascado na areia da praia e corriam ansiosas em direção da água como que guiadas por uma cativante melodia ecoando suavemente sobre as ondas do mar.
Ou, quem sabe, guiadas por seres invisíveis aos olhos humanos, porém, não para elas!
Muitas lendas são fatos distorcidos!
Muitos mitos, tornaram-se mitos pela deturpação da realidade, pelo raciocínio materialista!
Nos escaninhos do manto da Criação, existem e desenrolam-se “coisas” que o “inteligente raciocinar” do ser humano nem sequer sonha e jamais irá captar e, muito menos, entender!