Justificando a emenda de reforma política

A emenda ora proposta se justifica, em primeiro lugar, considerando a necessidade de harmonizar os princípios gerais emanados do Parágrafo Único do Art. 1º e do Caput do Art. 14 da Carta Magna com seus dispositivos acessórios, mencionados nos Artigos 16, 27, 28, 29 (Inciso I), 44, 45, 46, 77 e 118; e de preencher uma grave lacuna observada no texto da Lei Maior. Percebe-se o lapso do legislador constituinte quando formulou o Caput do Artigo 14 e seus Incisos, ao enunciar as formas pelas quais se exerce a soberania popular, destacando as modalidades do Plebiscito, do Referendo, e da Iniciativa Popular, omitindo, incompreensivelmente, a modalidade referente às eleições periódicas, para os cargos eletivos, em todos os níveis da representatividade. Omitiu-se exatamente a modalidade principal e insubstituível de exercício da soberania popular.

E, para acentuar ainda mais as necessidades de harmonizar dispositivos principais da Carta constitucional com seus dispositivos acessórios, citaríamos um exemplo. Reza o Artigo 16 que “a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição…”. Cabe aqui perguntar: qual “processo eleitoral” Qual “eleição”, se até então não se fez nenhuma referência à eleição? Só se fez referência a que “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”, conforme o dito no Parágrafo único do Artigo primeiro da Carta, dando a entender que se faça a explicitação da forma, ou modalidade, pela qual o “povo exerce o poder pelos seus representantes eleitos”.

Adiante vem o Artigo 14, e em seu caput - onde está a referência de que “a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante” - aí caberia e cabe, em primeiro lugar, a menção da modalidade “eleições periódicas”, como sendo o Inciso I do Artigo 14, para corresponder com o enunciado no caput deste Artigo, o que não foi feito pelo legislador constituinte, impondo-se fazê-lo agora.

Poder-se-ia argumentar, para justificar a omissão, que da leitura dos textos, tanto do Parágrafo único do Artigo primeiro quanto do caput do Artigo 14, infere-se que o pleito eleitoral está implícito. Estar implícito, neste caso, não satisfaz por se tratar de uma das cláusulas pétreas da Constituição, impondo-se a explicitação da modalidade eleições periódicas como a principal e primeira forma de exercício da soberania popular, precedendo todas as demais modalidades, o que não se observa no desdobramento do Artigo 14 da Carta, configurando a omissão que precisa ser sanada.

Poder-se-ia argumentar, ainda, que, estando explícito que a soberania popular será exercida pelo voto universal, direto e secreto, já se estaria admitindo que seria por meio de eleições; além do que, as eleições periódicas são uma prática que vem sendo seguida antes e depois da Constituição vigente, dispensando-se a explicitação dessa prática no texto constitucional. Tais argumentos também não satisfazem, tendo em vista que, para exercer a soberania popular pelas modalidades do plebiscito, do referendo e da iniciativa popular, será sempre exigido o voto universal, direto e secreto, quando o cidadão, ao votar, terá que exibir a prova de que é eleitor.

E o fato de que as eleições periódicas são uma prática consagrada, que vem de uma época anterior e posterior à atual Carta constitucional, não exclui a hipótese do surgimento de um Presidente da República de vocação autoritária e messiânica, que poderia questionar a realização de eleições para que o povo exerça o poder por meio de representantes eleitos, propondo a abolição dessa modalidade de exercício da soberania popular por não estar explicitada no texto constitucional, substituindo-a pelo biscito e/ou referendo, para legislar e até para escolha de um parlamento de fachada, cuja lista de “parlamentares” escolhidos a dedo seria submetida a referendo para “aprovação”. O mesmo expediente poderia ser usado por este “Presidente” para a escolha de governadores de Estados, de deputados para as Assembléias Legislativas, de prefeitos e de vereadores. Seria o império da “democracia direta”, sonho de certas lideranças com vocação salvacionista, autoritária e ditatorial, que já povoaram nosso País.

De modo que a não explicitação da modalidade de eleições periódicas no desdobramento do Artigo 14 da Lei Maior e, em consequência disso, fora do alcance das salvaguardas pétreas do texto constitucional, no limite de uma interpretação literal dos Incisos do Artigo 14, poderá dar ensejo a que a realização de eleições em nosso País, uma prática democrática consagrada, possa ser objeto de questionamento por algum lunático de plantão, razão pela qual é bom lembrar que:

A emenda se justifica, também, em segundo lugar, pela necessidade de criar no País, para o bem da democracia representativa, partidos nacionais fortes, coesos, definidos doutrinária e politicamente, capazes de fazer valer a boa prática da disciplina partidária e fidelidade aos seus princípios orgânicos e programáticos, sem que seja necessária uma lei impositiva, como ocorria nos tempos da ditadura. Esse avanço será conseguido com a separação das eleições para cargos eletivos federais das eleições para cargos eletivos estaduais, conforme o proposto na alínea a do Inciso I do Art. 14.

A vantagem da separação das eleições para os cargos eletivos federais das eleições para cargos eletivos estaduais é notória pela impossibilidade de haver alianças e coligações esdrúxulas, como aquelas que a resolução do Superior Tribunal Eleitoral pretendeu instituir com a chamada verticalização. A resolução sobre a verticalização gerou polêmica e não chegou a ser devidamente respeitada, mas não deixou de ser uma medida positiva para chamar a atenção das lideranças políticas sobre a necessidade de se aperfeiçoar o sistema de organização partidária e coibir vícios existentes no sistema eleitoral herdados de um passado pouco democrático.

A resolução sobre a verticalização não teve a eficácia desejada, não por não ser oportuna, mas porque esbarrou na mistura de eleições para cargos eletivos federais com eleições para cargos eletivos estaduais. A mudança proposta pela emenda ora apresentada dispensa a medida de força para coibir coligações descabidas. Ela, por si só, inviabiliza as alianças promíscuas, pelo simples fato de que desaparecem os motivos para tais.

De modo que a separação das eleições para cargos eletivos federais de Presidente da República, de Senadores e de Deputados Federais; das eleições de Governadores e de Deputados Estaduais, objeto da presente emenda em seu desdobramento, dará início a um processo de adequado alinhamento partidário e de maturação da democracia no País, estimulando a formação de uma nova cultura política, reduzindo a influência do poder econômico nas campanhas eleitorais, estabelecendo critérios naturais para formação da base parlamentar do Executivo eleito, sustentada em elementos programáticos e não em barganhas de caráter fisiológico. Poderá significar o fim do “balcão do toma-lá-dá-cá”.

A separação das eleições para cargos eletivos federais de outros pleitos resultará em um desejável benefício ao processo político, pois facilitará a compreensão do eleitor sobre o conteúdo das alianças estabelecidas para a escolha do Presidente da República. É em função da escolha do chefe do Executivo federal que se alinharão os partidos em alianças, sempre com base em um programa de governo. Além disso, a medida descomplica o processo de votação. O eleitor sabe que deverá votar no deputado federal, nos senadores e no Presidente. São apenas três votos nas eleições mais importantes, aquelas que definem os destinos do País. Vão acabar os arranjos chamados “dobradinhas” que viciam o pleito, violam a disciplina partidária, confundem os eleitores e despolitizam o processo eleitoral.

Outra consequência benéfica para o aperfeiçoamento da democracia no País, e dos bons costumes políticos, é a coincidência das eleições de âmbito estadual com as eleições municipais. Tem muito mais lógica para o eleitor. A alteração será benéfica, também, para um alinhamento partidário mais coerente das alianças eleitorais nos Estados, tendo em vista que o que vai nortear as coligações é a escolha do governador. De modo que a tendência natural para os pleitos estadualizados e municipalizados é a de fortalecimento dos partidos, também, nos âmbitos estadual e municipal, inibindo a proliferação das siglas de aluguel e a dispersão partidária.

Tem muito mais lógica o eleitor ser chamado a votar no governador, no deputado estadual, no prefeito e no vereador, do que em uma eleição embaralhada pela existência de candidaturas com poder de administrar e legislar no plano federal, junto com candidaturas que só governam no plano estadual, quando terá que votar no Presidente, no deputado federal e alternadamente em um e em dois senadores, além de governador e de deputados estaduais. Neste último caso, o eleitor precisa colocar na urna seis (6) votos, quando com o pleito federalizado terá, no máximo, que depositar na urna apenas quatro (4) votos.

A maior coerência e simplificação do processo eleitoral que o preenchimento de uma lacuna existente no texto constitucional enseja - no caso, separar as eleições para os cargos eletivos federais das eleições para os cargos eletivos estaduais - por si só, recomenda a adoção da emenda ora proposta, com as alterações de redação dos dispositivos do Artigo 14 da Carta de 88.

Vale lembrar, ainda, mais uma vantagem oferecida pela desvinculação do pleito para os cargos eletivos federais dos demais pleitos: o aumento das possibilidades de enriquecer o Parlamento com a presença de ex-governadores que cumpriram seus mandatos e ficam livres para disputar vagas na Câmara Federal ou no Senado, sem ter que se desincompatibilizar, o mesmo ocorrendo com os prefeitos. Nos dois casos, trata-se de lideranças com vasta experiência no Executivo que podem ajudar a melhorar a qualidade do Legislativo.

Finalmente, deve-se mencionar um inconveniente, mas passageiro, da mudança proposta. Trata-se da necessidade de prorrogar os mandatos dos governadores e dos deputados das Assembléias Legislativas dos Estados e do Distrito Federal para que haja coincidência de data para a realização das eleições para os cargos eletivos estaduais com as eleições para os cargos eletivos municipais, conforme o previsto na alínea b, do Inciso I, do Art. 14.

Coincidência que só poderá ocorrer nas eleições de 2008, tendo em vista a impossibilidade constitucional de reduzir os mandatos dos governadores e das Assembléias Legislativas para que a coincidência pudesse ocorrer na mesma data das eleições municipais previstas para o ano de 2004.

Deve-se reconhecer que é um inconveniente de menor importância, se comparado com os benefícios e vantagens que a mudança no calendário eleitoral vai proporcionar para o avanço da democracia no País, o aperfeiçoamento das instituições republicanas e o fortalecimento do sistema representativo, do qual emana o Poder, conforme preceitua a nossa Carta Magna.