O Concurso de Verdades

A ideia veio quando Ariovaldo foi convidado a acompanhar o principal evento da cidade vizinha: o famoso concurso de mentiras de Pirabiboca do Norte, em sua 10ª edição. O prêmio do vencedor neste ano era um jegue novinho em folha, com proteção contra empacamento: um maço de cenouras amarradas com fios de rabo de jumenta, pendurado numa vara posicionada diante do jegue, acomodada na reentrância de uma tira de couro cru em volta da cabeça do animal. O juiz, o prefeito Arlindo, fez uma demonstração da nova tecnologia ao vencedor, com total sucesso, e este saiu todo pimpão em seu jegue zero quilômetro.

O vitorioso fora o João Caju, conhecido contador de causos na região, que até então sempre se recusara a participar, sob a alegação de que as mentiras contadas no concurso não eram nada originais. Por insistência da mulher, que não aguentava mais os empacamentos do burrico da família, resolveu participar desta vez. E sagrou-se vencedor por unanimidade, numa disputa com inúmeras histórias de pescadores, caçadores, mulas-sem-cabeça, sacis e quetais. João Caju arrebatou o prêmio simplesmente afirmando, em alto e bom som, que Pirabiboca do Norte era a cidade mais atrasada da região, e que nunca seria alçada à condição de “potência agreste” prometida pelo atual prefeito. O júri, constituído de cinco probas personalidades, coincidentemente afinadas politicamente com o mais alto mandatário municipal, aplaudiu de pé a performance do Caju, com entusiásticas e sinceras ovações.

Ariovaldo também aplaudiu, com uma pontinha de inveja. Afinal, como prefeito de Pindaíba do Oeste, ele também precisava incrementar a cultura em sua cidade. Tinha de inventar um concurso tão bom como o concorrido evento de Pirabiboca, já célebre em toda a região do Alto Cupinzeiro.

Ariovaldo matutava como um matuto no caminho de volta. “Concurso… sim… mas do quê? Mentiras também? Não, não, concorrência direta com o Arlindo, não dá. Beleza?… Não, muito poucas participantes por aqui. Feiúra?… Minha sogra levaria todos os anos. Hmmm… Por que não verdades? Isso, um concurso de verdades! Muito bem, Ariovaldo, seu geniozinho do sertão, ótima ideia.” Decisão tomada, foi sua excelência chegar ao paço municipal e incumbiu o Chico-sem-dente, secretário municipal da Cultura, de providenciar todo o necessário para o certame.

Depois de várias reuniões entre os membros da comissão organizadora, ou seja, os representantes escolhidos das Secretarias diretamente envolvidas, e tão-somente dessas por decisão do prefeito (Cultura, Infraestrutura, Turismo, Desenvolvimento urbano, Vias públicas e Bem-estar social), as regras foram estabelecidas de comum acordo e posteriormente publicadas em Edital específico.

1° Concurso de Verdades de Pindaíba do Oeste

REGRAS

O concurso foi um acontecimento. Saiu até num jornal da capital, daqueles oferecidos nos semáforos. A cidade inteira se mobilizou. Foi preciso distribuir senha para votar, e não deu nem para terminar num único dia. Foram dois dias de presença maciça do povo às urnas, com índice de abstenção próximo de zero. Dois estagiários do Tribunal Regional Eleitoral chegaram a Pindaíba como observadores, com a missão de estudar o fenômeno e elaborar um relatório conclusivo.

Depois de outras tantas reuniões da comissão organizadora, chegou-se à conclusão de que o previsto júri de notáveis não poderia ser constituído de nenhum notável propriamente, já que todos, autoridades civis, militares e eclesiásticas, haviam participado do evento, sem exceção, e por conseguinte não haveria a necessária isenção. A legitimidade do concurso estaria em cheque e, com ela, a própria reputação da Prefeitura.

A solução foi convocar cinco estudantes de 17 anos com as melhores notas naquele ano. Assim, o júri formado pela nata intelectual da sociedade pindaibense – três meninas descoladas e dois meninos tatuados – reuniu-se em sessão secreta na sala de conferências da prefeitura, para deliberar sobre as dez melhores verdades apresentadas. Depois de um dia inteiro de discussões acaloradas, risos abafados e gargalhadas tonitruantes, bem como múltiplos estouros de bolas de chiclete acompanhados com séria apreensão do lado de fora da sala, saiu finalmente a lista das dez verdades selecionadas, dispostas em sequencia aleatória e seguidas do respectivo pseudônimo. O Chico-sem-dente leu em voz alta para todos os atentos funcionários da prefeitura, com sua fala assobiada:

A entourage do prefeito, com ele no centro, foi rindo de cada verdade à medida que ia sendo revelada, menos da sexta, que mencionava o chefe com a Clarisbela, moça discreta e prendada, de ilibada conduta. Do sétimo item em diante, as risadas continuaram, mas sem a faceirice das anteriores. O penúltimo tópico, o dos vereadores, mereceu um sepulcral e olímpico silêncio das suas excelências parlamentares que o acaso quis que ali estivessem presentes, a ouvir tão desairosa infâmia.

Não é possível uma coisa dessas! Disse um mui desconcertado e não menos indignado prefeito para Jazão, seu chefe de gabinete. O concurso é de verdades, verdades! Ou não é? Como é que esse… esse “Cherloque” duma figa inventa um negócio desses? Não vai ganhar, não vai!

Claro que não, prefeito. O amigo pode ficar tranquilo. Não sei nem como essa asneira foi escolhida pelo júri.

Ah, mas eu sei muito bem. Essa molecada quis me pregar uma peça, mas deixa estar, pode deixar. Vou falar com os pais de cada um deles.

Isso mesmo, senhor prefeito. Assim é que se fala.

O nobre vereador Bicão – quarto mandato – também emendou sua insatisfação com o resultado até ali.

O senhor prefeito pode contar com o apoio da nossa bancada. Esse tal de “CPI” também só está querendo tumultuar o processo legislativo, que até agora vinha indo muito bem. A máquina pública está azeitada e esse sujeitinho fica aí querendo jogar areia. Onde já se viu tamanha desfaçatez? O concurso era de verdades, como bem o disse o senhor prefeito. De verdades! Imaginar que utilizamos recursos públicos em proveito próprio… É o fim!

Tirantes a sexta e nona supostas verdades, as demais não causaram maior comoção entre o alcaide sertanejo e seus numerosos colaboradores de Pindaíba do Oeste.

O resultado das dez mais foi fixado no bar do Ciro, ao lado da gravura de São Cipriano, padroeiro da cidade, conforme rezava o Edital. Não demorou para que um segundo concurso, extra-oficial, corresse solto entre a gente da cidade, para tentar descobrir quem era quem sob cada pseudônimo.

O mais fácil de identificar, claro, era o “Apaixonadão”. Só podia ser o Jacinto, que sempre morrera de amores pela Ivanusa, desde criança. Ela é que nunca lhe dera a menor bola. Mas agora, com a repercussão desta verdadeira declaração de amor em público, ela abrira finalmente a guarda e os dois já podiam ser vistos juntos na praça depois da missa, aos beijos e abraços, ou na sorveteria da Lalá, com cada qual mirando o sorvete na boca do companheiro, num encantador engarrafamento aéreo de aviõezinhos pra cá e pra lá.

Com exceção da “Cupida atenta” e da “Plantonista da virtude”, que tinham muitos possíveis candidatos, os outros foram praticamente descobertos por consenso popular. O único que, realmente, ninguém sabia de quem se tratava, era justamente o “Cherloque”, virtual descobridor de um caso ultrassecreto do distinto prefeito, mais secreto que os atos administrativos da câmara de vereadores. O tal caso, a verdade sexta, logo tornou-se rumorosíssimo na cidade inteira. Não demorou a surgir os mais verossímeis detalhes do affaire Ariovaldo/Clarisbela.

Alguém garantiu ter visto dia desses os dois disfarçados lá pros lados da Serra do Bugio, num piquenique a dois, ela com um lenço cobrindo o rosto e ele com um sobretudo negro de golas levantadas. Tudo muito discreto. Outro informante asseverou que o caso tinha começado antes mesmo do casamento do prefeito, e só ainda não tinha vindo a público porque os dois eram, de fato, mestres da dissimulação. Só o tal Cherloque, que ninguém sabia quem era, é que teria as provas do envolvimento amoroso.

Clarisbela era uma moça de 22 anos, filha única do Tião açougueiro e de D. Zilda, um primor de morena de olhos negros. O pai nutria o tradicional ciúme paternal pela filha, apenas num grau algo mais elevado do que seus congêneres. Se, por exemplo, alguém tocava no nome dela no açougue, por qualquer motivo, era prontamente interrompido pelo som do facão a cortar de um só golpe um pernil inteiro, com osso e tudo. E o assunto logo mudava na fila.

Ariovaldo estava casado há sete anos com D. Clotilde Empertigueira Souza e Silva, da mais tradicional família quatrocentona de Pindaíba. Conheceram-se no início do seu primeiro mandato e casaram-se logo em seguida, em memorável cerimônia que entrou para os anais da alta sociedade pindaibense. Tudo o que o prefeito Ariovaldo não precisava agora, no final do seu segundo mandato, era de um escândalo. Como, numa situação dessas, iria poder fazer da Dalma, assessora extraordinária para assuntos de segurança institucional, sua sucessora? Como?

Assim é que o outrora límpido tempo do sertão, sempre revigorante, fechou de vez na residência do prefeito e primeira dama:

Não quero ouvir mais nada.

Mas, Clotô, eu nem comecei a explicar…

Pois vá se explicar para a Claraboia ou Clarisbela, sei lá o quê. E também para o pai dela, que anda a te procurar para um dedo de prosa.

Você sabe que é mentira.

Não sei de nada. O concurso não é de verdades?

Sim, mas…

Então. Alguém descobriu essa sua desavergonhada verdade escondida e a tornou pública. Não é você que vive falando em transparência de atos governamentais? Faça bom proveito agora. Belo começo.

É mentira, Clotô. Mentira! O infeliz que escreveu esse disparate sabe que não tem chance de ganhar, porque se ganhasse ia precisar provar, pelas regras do Edital, e aí…

E aí que quem tem que provar que está limpo nessa história não sou eu, senhor prefeito. Já arrumei as malas.

Malas, Clotô?…

Estou indo pra casa da mamãe. Quando você tiver resolvido essa situação, de um jeito ou de outro, pode ir me procurar. Nem adianta me mandar e-mail, porque lá não tem computador. E carta eu não recebo. Tchau.

Clotô…

Não se esqueça do remédio pra pressão alta. Tem que tomar no café da manhã.

Feita a recomendação, a classuda senhora primeira dama se dirigiu com suas malas ao taxi que já a esperava na porta e sumiu numa nuvem de poeira, igual àquelas do velho oeste. Ariovaldo voltava cabisbaixo para o quarto quando Cida, a empregada, avisou:

Dr. Ariovaldo, o seu Tião tá aí fora querendo falar com o senhor.

Diga que não estou.

Ele falou que a primeira dama avisou que o senhor estava.

Silêncio. Tudo o que Ariovaldo queria com o seu concurso de verdades era incrementar a agenda cultural de sua progressista cidade. Nada mais. Nem de longe imaginara que com isso teria acionado o gatilho do Apocalipse.

Manda ele entrar, Cida. Diga que já vou.

Tião esperava de pé na sala, com a peixeira que servia para cortar pernil na cintura, ainda com marcas rubras do último golpe. Ariovaldo chegou com seu melhor sorriso político, daquele tipo fixo, inabalável, que desconhece as agruras da vida e vislumbra sempre um róseo porvir para todos que o contemplam.

Tião! Mas que prazer em rever o amigo! Saúde boa? Como está a família?

Mal, seu prefeito, muito mal.

Mas por que? Não vá me dizer que é por causa dessa bobagem que escreveram no concurso. Imagina… eu e a Clarisbela…

Ela me contou tudo.

Ela quem? Contou o quê?

A Clarisbela confessou que tem um caso de amor com o senhor, seu prefeito. Confessou chorando. A Zilda não se conforma. Saí de casa com uma tentando consolar a outra.

Silêncio. Rompera-se mais um selo do Apocalipse, o principal. Ariovaldo ficou mais estático do que a estátua do Coronel Firmino, na praça central, impassível exemplo de estoicismo sertanejo, com as calças sempre molhadas pelo chafariz e os cabelos brancos, não de velhice, mas por obra e graça dos pombos da matriz. Agora viria uma sequencia sem fim de tragédias, é o que Ariovaldo antevia para sua vida dali em diante.

Sente-se, Tião, por favor, disse o prefeito num tom submissamente baixo. Vamos conversar. Toma alguma coisa?

Não.

Não? Não, claro que não. Família evangélica tradicional, como pude esquecer. Um café então. Cida, traga um café aqui pro nosso companheiro Tião.

Não quero sentar e não quero café não, seu prefeito. Quero uma solução para esse… esse… para essa situação.

Olha, Tião, não foi nada premeditado. Como vou dizer? Aconteceu, foi isso.

Aconteceu, pois é. E ainda vai acontecer mais coisa. Na minha terra, honra de filha donzela se lava com sangue.

Mas a Clarisbela está com sua honra intacta, Tião! Pode acreditar. Nós nunca…

Seu prefeito pode economizar o trololó. Já disse que ela contou tudo. Saí de casa com mãe e filha chorando, não sabe?

Calma, Tião. Pra tudo se dá um jeito, menos pra morte.

Tem vez que o jeito é só a morte mesmo, seu prefeito.

Vamos colocar as coisas de outra maneira. Vamos procurar uma solução para esse… esse… para essa situação. O que o amigo sugerir, o que pedir, eu faço. Pode falar.

Pois muito bem. A Clarisbela já está falada na cidade. Aqui não tem mais jeito da gente ficar não. Quero voltar pro norte, e tentar um negócio por lá, alguma outra coisa menos cansativa que açougue. Talvez fornecedor de armas para os jagunços de lá. Ainda tem cangaceiro na minha terra, não sabe? São amigos mesmo. Fazem qualquer serviço para agradar um conterrâneo. Camaradagem. Tá no sangue isso.

Estou entendendo perfeitamente. Acho que para abrir um negócio lá no norte, qualquer que seja, é preciso um bom capital inicial. Eu sugiro, porém, algo mais… digamos, pacífico. Uma lojinha, por exemplo. O que o amigo me diz?

Parece bom também. Mas tudo vai depender desse capital inicial, não é mesmo seu prefeito?

Claro, claro. Sente-se, por favor. Tome aqui seu cafezinho. Vamos falar do capital inicial.

Com duas xícaras de café o acerto foi fechado, num montante bastante razoável. Na verdade, num montante suficiente para aquisição de um supermercado de porte médio, mas Ariovaldo achou até barato. O Armagedon fora adiado. Clarisbela partiria amanhã com a família para o norte, e ele nunca mais a veria. Essa era a parte triste da história. Por outro lado, sua jugular permanecia intacta, e assim estava ele agora em condições de reescrever um final menos trágico para sua história.

Fisicamente íntegro, porém moralmente debilitado, mentalmente confuso e animicamente arrasado, Ariovaldo se arrastou até a prefeitura. Tinha de manter a aparência de normalidade, tanto quanto fosse possível.

O segundo turno de votação, para escolha da verdade mais verdadeira entre as dez selecionadas, ocorreu no dia seguinte, com igual êxito. Novamente foram precisos dois dias para todo mundo votar. A apuração foi feita no ginásio da prefeitura, sob a ostensiva supervisão de curiosos e certamente dos nove pseudônimos concorrentes, já que o Jacinto e a Ivanusa tinham ido passear no Mirante de Santana, segundo informaram aos familiares e amigos. O Mirante, clássico ponto de encontro de namorados, era há anos um lugar já um tanto abandonado, com muito mato e arbustos crescidos, que dificultavam a magnífica visão panorâmica das cadeias de montanha que formavam o vale onde se situava a cidade. A rigor, ultimamente só dava para vislumbrar mesmo o céu. O prefeito anterior até chegou a propor um projeto de revitalização do local, mas a revolta estudantil foi de tal monta que o assunto foi prontamente esquecido.

Feita a apuração, preenchidos os mapas de totalização, coube ao cabo Pedroca, máxima autoridade militar presente no evento, anunciar a verdade vencedora.

Senhoras e senhores, é com grande satisfação que tenho a honra de anunciar a verdade mais votada pela população de Pindaíba do Oeste. Com 84,6% dos votos, a vencedora é…

Cabo Pedroca deu uma risadinha e um olhar de 180 º para a plateia, exatamente como vira na festa do Oscar.

Fala logo, Pedroca! gritou uma voz impaciente.

E a vencedora é… aquela que fala do…

Vai, Pedroca!

A que fala do… do despacho em segredo de justiça do prefeito Ariovaldo e da Srta. Clarisbela. Palmas! Palmas!

ÓÓhhhhhhh! Ecoou em uníssono a voz do povo presente, numa demonstração de perplexidade quase legítima.

Ariovaldo até que tentou, mas não conseguiu desencavar o superior sorriso magnânimo que havia treinado para tal contingência, de remota probabilidade. Visivelmente contrariado, virou-se para sair.

Calma, prefeito, tranquilizou o fiel escudeiro Jazão. Calma, o tal Cherloque ainda vai ter que provar. São 48 horas de prazo para ele se apresentar. Deve ser tudo um blefe. Se ele não aparecer, fica valendo o segundo lugar. Vamos ouvir.

E em segundo lugar, continuou Pedroca com o mesmo sorrisinho. Com 10,2% dos votos… ganhou aquela que fala do… do… do cambalacho na câmara dos vereadores. Palmas! Palmas!

Poucas palmas e muitas vaias saudaram a desinteressante verdade chegada em segundo lugar. Os olhos dos munícipes estavam voltados para o prefeito, que não quis ouvir mais nada e foi direto para a prefeitura.

A secretária, Palmira, assustou-se com o aspecto dele ao chegar à prefeitura.

Senhor prefeito, o senhor está tão pálido! O que aconteceu?

Adivinha, D. Palmira.

Não acredito!

Pois pode acreditar. “Ganhei” o concurso de verdades. Que tal? Maldita hora em que eu tive essa ideia. Deve ter sido praga do Arlindo.

Ariovaldo entrou cambaleando no seu gabinete. Palmira chegou logo depois, trazendo água e açúcar.

Mas… é verdade, senhor prefeito?

Verdade o quê?

Desculpe-me. Essa verdade sobre o senhor e a Clarisbela. É verdade?

Que importa isso agora, D. Palmira? Minha esposa já me deixou, a cidade inteira está rindo de mim, e eu nunca mais vou ver a… essa aí. Sou um trapo político, um farrapo humano, isso é o que eu sou.

Mas, senhor prefeito, disse Palmira em tom consolador. A pessoa que ganhou… como é mesmo o pseudônimo dele?

Cherloque.

Isso, Cherloque. Ele tem que se apresentar à comissão do concurso, não é mesmo? Tem que abrir o envelope com esse pseudônimo, mostrar a todos que é ele realmente e, o mais importante, apresentar provas. O senhor acha que ele tem provas?

Não sei, não sei. Acho difícil. Fomos sempre discretíssimos. Quer dizer, eu…

Eu entendo, senhor prefeito. Não se preocupe. O povo dessa cidade não perdoa nada mesmo. Se o senhor disser “quem nunca pecou que atire a primeira pedra”, vai ser apedrejado antes de terminar a frase. Não adianta.

O que eu faço, D. Palmira?

Vamos esperar. Quem sabe não é um blefe desse Cherloque, um trote de um desafeto político qualquer. Quem sabe ele não entra em contato com o senhor, em off, para fazer algum tipo de acordo?

Chantagem.

Para nós, sim, chantagem; para ele seria uma negociação política.

Vou fazer o que a senhora sugere. Vamos esperar.

Isso, senhor prefeito. Enquanto espera, porque não relaxa um pouco? Olha, o senhor parece um estresse encarnado. Dá pena. Vamos dar um pulo em casa. Tenho um vinhozinho do porto, sonatas de Vivaldi, que eu sei que o senhor gosta, lareira… Garanto que o senhor sai de lá renovado, de corpo e alma.

A senhora é muito gentil, D. Palmira, mas não creio que…

É nessas horas que conhecemos os verdadeiros amigos. Pense bem. Vou até a copa preparar um chazinho, enquanto o senhor resolve. Pense bem.

Pamira se retirou e Ariovaldo ficou ali na cadeira, com as pernas esticadas, parecendo um poste abalroado, apoiado apenas nas omoplatas e no cóccix. Só os pensamentos se moviam dentro dele. “D. Palmira… sempre simpática. Até agora foi a única que se preocupou realmente comigo. Mas daí a fazer um relax na casa dela vai uma grande distância. Imagina só se alguém vir. O prefeito abandonado pela mulher é visto na casa da viúva jeitosona… Se bem que ela é discreta, e eu também…” Jeitosona é como os funcionários da prefeitura carinhosamente se referiam à secretaria de tantos anos do prefeito, de desempenho admirável e dotes físicos ainda idem. “Não, nem pensar. Já completei minha cota de escândalos do ano”.

Pela porta entreaberta, Ariovaldo notou que o computador de D. Palmira estava ligado. Percebeu que não era nenhum site oficial, dada a profusão de cores que emanava do monitor. Curioso, aproximou-se para averiguar e deu de cara com uma página literária. No alto se lia, em letras grandes: “Obras completas de Sir Arthur Conan Doyle”.

Ariovaldo ficou algum tempo olhando para a tela. Depois voltou para o gabinete e sentou-se novamente, desta vez um pouco mais relaxado. Ainda se lembrou novamente do Apocalipse ao ver D. Palmira chegar toda sorridente com uma xícara de chá numa mão e um pratinho de biscoitos na outra, mas retribuiu o sorriso e convidou-a a se sentar. Enquanto tomava o chá, Ariovaldo deu um sorriso mais aberto. D. Palmira retribuiu. Os olhos de ambos se cruzaram numa reciprocidade investigativa. Ele então se pôs a fazer discretas e insensíveis cosquinhas nas unhas vermelhas da mão displicentemente estendida em sua direção, bem menos vermelhas do que as bochechas dela dali em diante.

Ariovaldo, o prefeito, conseguira manter um romance escondido por oito anos, oito! Ninguém ia reparar nuns poucos encontros relaxantes agora. E só ele sabia como precisava relaxar. Já era hora de começar a pensar num novo concurso cultural para o ano que vem, talvez uma corrida de sacos de café ou lançamento de ferraduras à distância…

Roberto C. P Junior

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